Montagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Davis Sanchez/Unsplash e Acervo/IPEN

 

20/07/2020

Por Herton Escobar

 

Maria José Alves de Oliveira cresceu numa família pobre do interior da Paraíba, sem televisão, sem geladeira, sem eletricidade, às vezes, catando comida do lixo para sobreviver. Não bastasse tudo isso, havia outra necessidade que a incomodava constantemente na infância: a fome de conhecimento. Essa, ela saciava com os jornais velhos que alguém, vira e mexe, trazia da cidade. Devorava cada palavra que sua educação de 4ª série lhe permitia consumir; e nunca ficava saciada. “Eu sentia uma necessidade enorme de conhecimento”, lembra a química, hoje com 50 anos, morando em São Paulo, mãe de três filhas e com o terceiro pós-doutorado em curso.

O caminho para chegar ao ensino superior não foi fácil, mas ela chegou lá. Aos 32 anos, iniciou a graduação em Química nas Faculdades Oswaldo Cruz e conseguiu uma bolsa de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que a levou ao laboratório da pesquisadora Duclerc Parra, no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), para trabalhar num projeto de transformação de polímeros por irradiação. “Fiz minha iniciação científica no Ipen e me encantei por lá. Descobri como era gostoso trabalhar com pesquisa”, relembra Maria José. “Pensei: esse é o caminho que vai me dar alegria.”

Dessa iniciação científica, brotou um mestrado; o mestrado evoluiu para um doutorado (ambos sob a orientação de Duclerc, com bolsa Fapesp); o doutorado ganhou um Prêmio Capes de Tese, em 2014, e assim Maria José entrou para o extenso hall de ilustres egressos do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia Nuclear Ipen/USP, que acaba de atingir a marca de 3 mil mestres e doutores titulados.

Criado há 44 anos, em março de 1976, o programa tem hoje cerca de 500 alunos matriculados, com mais de 100 orientadores, desenvolvendo pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico, como medicina, engenharia, energia, biotecnologia e nanotecnologia.

“É a pós-graduação mais exitosa da USP com uma entidade associada”, diz o reitor da USP, Vahan Agopyan. “Um casamento perfeito”, descreve ele; “muito bom para o Ipen, muito bom para a USP e, consequentemente, muito bom para a sociedade.” 

Fundado em 1959, o Ipen é uma autarquia vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) do Estado de São Paulo e gerida técnica e administrativamente pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que é um órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) — ou seja, é uma instituição de caráter híbrido, estadual-federal. 

Apesar de não ser parte da USP, suas instalações ficam dentro da Cidade Universitária, em São Paulo, e há uma sinergia muito grande entre as instituições. A pós-graduação em Tecnologia Nuclear simboliza a consagração desse “casamento”, que acaba de gerar seu primeiro “filho”: um novo curso de graduação em Engenharia Nuclear, que será oferecido a partir de 2021 pela Escola Politécnica (Poli) da USP, em colaboração com o Ipen.

 “O fato de estarmos na USP é crucial”, diz o superintendente do Ipen, Wilson Calvo. “É um campo muito fértil para ciência, tecnologia e inovação.” Além da interação direta com os alunos, professores e laboratórios da universidade, o instituto é vizinho do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), com o qual trabalha no projeto do submarino nuclear, e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) do Estado — ambos, também, localizados dentro da Cidade Universitária.

Muitos dos professores da Escola Politécnica que darão aulas no novo curso de Engenharia Nuclear foram formados na pós-graduação do Ipen, destaca Calvo. O programa é avaliado como Nota 6 (numa escala de 1 a 7) pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e outorga uma média de 130 títulos por ano, sendo dois terços de mestrado e um terço, de doutorado. As aulas são ministradas por professores da USP e servidores credenciados do Ipen, utilizando as instalações únicas do instituto — que incluem dois reatores nucleares (IEA-R1 e IPEN-MB/01), dois aceleradores de partículas (cíclotrons) e cerca de 400 laboratórios, distribuídos por 11 centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

 

  • Link:https://youtu.be/z2COIUBp4BA

O programa tem uma grande preocupação de formar não apenas bons profissionais, tecnicamente qualificados, diz Calvo, mas também “grandes lideranças”, que trabalhem pelo bem da sociedade. Ele mesmo é um egresso do programa, assim como tantas outras lideranças na área de ensino e pesquisa em tecnologia nuclear no Brasil.

A marca de 3 mil títulos (1 mil de doutorado e 2 mil de mestrado) foi atingida em julho deste ano. “Gerenciar um programa dessa magnitude não é nada fácil; somos maiores até do que algumas pequenas universidades”, diz o presidente da Comissão de Pós-Graduação do Ipen, Delvonei Alves de Andrade — outro egresso do programa. “É muito trabalhoso, mas também muito prazeroso”, completa ele. “É a vida de muita gente que está nas nossas mãos.”

Os profissionais formados pelo programa estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo, trabalhando tanto no setor público quanto no privado, nas mais diversas áreas de aplicação da tecnologia nuclear. “É muito difícil um aluno nosso ficar desempregado”, destaca Calvo.

“Sinto-me muito privilegiado de ter estado no Ipen”, diz o pesquisador Gustavo Costa Varca, de 34 anos. Graduado em Farmácia pela Universidade de Sorocaba, ele concluiu doutorado em Tecnologia Nuclear no Ipen/USP em 2014, sob orientação de Ademar Lugão, um dos pesquisadores mais veteranos da casa, trabalhando no desenvolvimento de hidrogéis contendo moléculas farmacológicas para o tratamento de feridas. Na sequência, engatou dois pós-doutorados, de 2015 a 2019, ganhou prêmios, publicou dezenas de trabalhos, e hoje é gerente de novas aplicações na E-Beam, uma empresa de tecnologia nuclear no Estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos.

“O Ipen tem visibilidade internacional; é reconhecido como uma autoridade na área”, garante Varca. Uma das principais marcas do instituto, segundo ele, é a sua pluralidade científica e tecnológica.

O uso mais conhecido da tecnologia nuclear é na geração de energia, como nas usinas nucleares de Angra (RJ), mas suas aplicações vão muito além disso. A radiação é uma ferramenta essencial a vários setores da indústria, muito usada na esterilização, fabricação e desenvolvimento de novos materiais, incluindo alimentos e medicamentos. O Ipen é o maior fabricante e desenvolvedor brasileiro de radiofármacos — substâncias radioativas usadas no diagnóstico e tratamento de doenças como o câncer (vídeo abaixo). “A contribuição social da tecnologia nuclear é muito grande”, afirma Andrade.

 

  • Link: https://youtu.be/1k8tjdaa6SQ

As pesquisas realizadas no âmbito do programa de pós-graduação buscam ampliar cada vez mais esse leque de conhecimento científico e aplicações da tecnologia nuclear. 

 Maria José, assim como Varca, utiliza fontes radioativas para modificar a estrutura de polímeros e transformá-los em hidrogéis (uma espécie de gelatina, ou “água sólida”), que podem ser combinados com componentes ativos para uma grande diversidade de aplicações. Sua principal linha de pesquisa é o desenvolvimento de hidrogéis, combinados com fármacos para o tratamento de feridas crônicas e derivadas da leishmaniose tegumentar. Mais recentemente, em 2019, começou um novo projeto de pós-doutorado, voltado para o uso de hidrogéis na limpeza e restauração de obras de arte, em colaboração com o pesquisador Pablo Vasquez Salvador. “Ainda temos muito o que descobrir, muito o que aprender”, diz a pesquisadora.

Passados 18 anos, Maria José segue tão apaixonada pela pesquisa quanto no primeiro dia da iniciação científica. E essa paixão já tem um legado triplo: sua filha mais velha seguiu os passos da mãe e concluiu recentemente o mestrado em materiais poliméricos no Ipen/USP; a filha do meio faz mestrado em Arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP; e a filha caçula está a um passo de concluir a graduação em Arquitetura, também na USP. 

Fonte: Reprodução do Jornal da USP


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